quinta-feira, 1 de março de 2012

O inimigo

Ontem topei com um livro na Biblioteca de Ciências Mário Schenberg. De cara impressionei-me com o projeto gráfico e as ilustrações. Fiquei entre as estantes separando o montinho de onde sairiam os livros para a próxima oficina Miolo Mole*. Conforme a leitura fluía fui sentindo aquela sensação rara de ter encontrado um pote gigantesco de ouro no meio de uma multidão de cegos. Assim que terminei permaneci daquele jeito imóvel e absorto por alguns minutos, daquele jeito que a gente fica quando percebe que algo irreversível acabou de acontecer.

Um bom livro faz isso. Seu efeito é imediato. Algumas pecinhas movimentam-se dentro da gente e de uma forma muito sutil deixamos de ser quem somos para nos tornarmos pessoas um tiquinho melhores. A sabedoria mora nos livros porque pessoas moram nele. Pessoas de carne e osso que passam um bom tempo inventando uma receita mágica de bolo.
O livro “O inimigo” de Davide Calil e Serge Bloch é uma pedra preciosa. Ele nos fala sobre a guerra através dos nossos próprios soldados – os sentimentos. Cada soldado vive isolado dentro do seu buraco, eles se odeiam e ninguém sabe o motivo, eles sequer se conhecem, receberam um manual e obedecem cegamente às regras. Com muita simplicidade e delicadeza Davide Calil nos leva de uma trincheira à outra, agachados, com medo. Ao lado de um dos combatentes compartilhamos a mesma visão parcial do inimigo.

“Está um pouco frio. Mas o disfarce número três me mantém aquecido. Rastejo lentamente até o buraco do inimigo. Sem dúvida ele não conta com essa surpresa. Pensa que estou dormindo, como todas as noites. Vou rastejar até o buraco dele e matá-lo.”

Doce e perturbador. Esse livro nos faz perceber além da grande guerra doente em que está mergulhado o mundo, ele nos coloca de frente com o espelho, cara a cara com nossos inimigos íntimos.

 “À noite, do meu buraco, vejo muitas estrelas. As estrelas fazem pensar. Gostaria de estar lá no alto e olhar para baixo. Às vezes me pergunto no que o inimigo pensa: ele também olha as estrelas? Se as olhasse, talvez entendesse que esta guerra não serve para nada e que é preciso termina-la.”

Hoje vou ler esse livro para 12 crianças da periferia de São Paulo. Um deles havia me pedido um livro sobre luta. Não espero nenhuma reação surpreendente, mas acredito que algumas dessas palavras irão ecoar e girar por um bom tempo dentro de suas cabecinhas e talvez suavizem um pouco a brutalidade que a vida lhes impinge.

O inimigo: Davide Cali
Título original: L’ennemi
Ilustrações: Serge Bloch
Tradução: Paulo Neves
São Paulo: Cosac Naify, 2008.
64     pp., 43 ils




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